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Um estudo relaciona a Economia com Shakespeare

da Revista Universo

Shakespeare está sendo reinventado há mais de quatro séculos, a ponto de críticos como o polonês Jan Kott (1914-2001) ter escrito, nos anos 1960, um livro em que o nome do bardo aparece relacionado a dois importantes dramaturgos contemporâneos, Beckett e Brecht.

Se Kott conseguiu fazer de Shakespeare umhomem do século 20, antecipando o materialismo e o existencialismo da dupla, por que não identificá-lo como um economista que escrevia tragédias e comédias pensando em dinheiro? Foi o que imaginou, antes de Jan Kott, o economista e professor norte-americano Henry Farnam (1853-1933), cujo ensaio sobre o dramaturgo inglês aparece, no livro "Shakespeare e a Economia" (Editora Lorge Zahar, 232 páginas, R$ 36), associado a um estudo do colega brasileiro Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central.

Kott, em seu livro, examinou como a construção dramática das peças de Shakespeare estava intimamente ligada à visão histórica de um dramaturgo empenhado em retratar - e criticar - o protocapitalismo de sua época. Já o livro de Franco/Farnam obedece a um método de investigação que considera tanto as leituras do autor para desenvolver as estratégias de poder de seus personagens (Maquiavel, particularmente) como sua relação com as pessoas comuns em busca de modelos para os arrivistas de um mundo em expansão, o elisabetano.

Foi durante o reinado de Elizabeth I, última monarca da dinastia Tudor, que a Inglaterra consolidou seu poderio naval e enriqueceu, vendo nascer teatros como o Globe, ao qual o nome de Shakespeare aparece automaticamente associado.

O conhecimento dos mecanismos econômicos foi muito útil ao dramaturgo quando este resolveu virar empresário, tornando-se sócio do Globe e, depois, de outro famoso teatro londrino, o Blackfriars, em 1609. Shakespeare já era, então, proprietário de terras. Gustavo Franco, mais do que analisar a linguagem econômica do dramaturgo, tarefa anteriormente cumprida por Farnam, mostra como em suas peças a alusão a moedas corrompidas por soberanos serve tanto como uma crítica ao sistema monetário quanto a uma equação em que dinheiro e palavras funcionam como valores de troca. E Shakespeare, séculos antes de James Joyce, cunhou centenas de palavras novas com sua dramaturgia, enriquecendo o léxico e os empresários de teatro - na sua época, a principal diversão de nobres e populares.

Mais do que uma cunhagem verbal, a de Shakespeare enriquecia a fala dos ingleses todos os dias com neologismos que deveriam traduzir a evolução de uma economia das ruas, em que os pobres corriam atrás de moedas feitas com metais de pouco valor, enquanto os nobres estocavam em casa as de ouro, atirando as recunhadas em transações sob suspeita. Modificar moedas era crime de traição, mas algo corriqueiro na Inglaterra de Shakespeare. Gustavo Franco vai buscar exemplos dela na peça "Henrique V", em que o rei, disfarçado, fala a seus soldados dos traidores ingleses que adulteravam coroas francesas, prática que depois os próprios reis haveriam de adotar, transformando-se em moedeiros falsos.

Shakespeare economista, como reconhece Franco, não é uma ideia nova. O economista inglês protestante Charles Stanton Devas (1848-1906), muito antes de Farnam, escreveu sobre o assunto, definindo-o como um "economista católico" e identificando-o como um defensor dos pobres, além de crítico da prática da usura - o que fica evidente em "O Mercado de Veneza", em que Shylock, um judeu visto com antipatia pelo dramaturgo, vira o vilão da história por emprestar dinheiro a nobres falidos. Shakespeare, no entanto, morreu rico e gastava moedas com a mesma facilidade com que economizava palavras em busca da frase certa, enxuta.

Numa Inglaterra de radicais transformações econômicas e de capitalismo nascente, o gênio de Shakespeare soube aproveitar oportunidades e vislumbrar o mercado de massa, o que explica seu sucesso junto às camadas mais populares da população. Os teatros abertos ficavam perto dos bordeis londrinos. Shakespeare teria tratado a linguagem do amor com a sintaxe do comércio. Só o teatro parecia capaz de testemunhar e registrar as mudanças sociais e econômicas da Inglaterra elisabetana, que começava a fazer vista grossa ao que se passava nas "liberties", como eram conhecidas as áreas fora dos muros da cidade. O dinheiro, como se vê, já era um poderoso antídoto antimoralista.

Mas a localização das "liberties", defende Franco, de modo algum significava liberdade total. O governo controlava mais os teatros que os bordeis, por serem mais perigosos. Lá se discutiam ideias. O economista, citando a peça "Medida por Medida", lembra que um de seus personagens é justamente um soberano que cai na própria rede da regulação excessiva, permitindo a um burocrata puritano que ataque os bordeis em sua ausência. O duque volta a tempo de corrigir a situação - e garantir a entrada de algumas moedas na corte, além de posar de misericordioso.

Shakespeare, apesar disso, não foi, garante Franco, "produto da benemerência de nobres esclarecidos nem de políticas de incentivo". Sua glória, assim como a do teatro inglês da época, pode ser atribuída ao espírito do capitalismo elisabetano que o fez abrir os olhos para o mercado potencial de suas peças em Londres. Muitas são as tramas do dramaturgo, afirma Franco, em que a ação gira em torno de questões econômicas. Tímon de Atenas fala de um homem rico e generoso que empobrece, esquecido por aqueles a quem ajudou.

Shakespeare mostra os dois lados de uma sociedade capitalista. Mas só os nobres têm direito a ser trágicos em suas peças. Franco mostra como os artesãos e a classe trabalhadora, em seu teatro, aparecem, de modo geral, como personagens cômicos. Só em "Sonho de uma Noite de Verão", ele contabiliza seus - um carpinteiro, um marceneiro e um funileiro, entre eles. Contrariando Jan Kott, Shakespeare não era lá tão socialista como gostaria o polonês. Talvez estivesse mais próximo do perfil traçado por outro homem de teatro, Bernard Shaw, que o viu como "esnobe e preconceituoso".
Redação

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